Sinceridade ou "Sincericídio"?





Poucas virtudes recebem tão ampla aprovação por parte dos moralistas e de pessoas em
geral como a da SINCERIDADE
Alguém pode se recordar de uma crítica com o objetivo de
desacreditá-la?  Uma prova adicional deste mérito da qual goza a sinceridade, vém de queseus opostos recebem a marca da injúria: a insinceridade, a mentira, a falsidade, o engano, afraude, o falso testemunho, a impostura, a simulação, a dissimulação, a fanfarronice, o bluff, a adulação, a calúnia etc. 

Vladimir Jankélévitch poderia dizer que:
"A sinceridade é sempre formosa, sempre exigível, e absolutamente boa; a sinceridade não
depende de cláusuras por meio das quais ela chegaria a ser virtuosa, mas ao contrário é
ela que outorga valor a uma conduta que em si mesma carece de valor".

Agora, vejamos, é claro que a sinceridade só é um valor do ponto de vista da psicologia
da consciência.

 Sincero não é quem diz a verdade sobre algo ou sobre si mesmo, mas quem diz o
que verdadeiramente pensa, sobre o que acredita ser verdadeiro.

É assim que verdadeiramente se pode dizer as maiores falsidades. Porém, o sincero, convencido da verdade de seu erro, desconhecendo a participação de sua fantasia ou de sua má informação, se identifica com o
objeto de sua convicção. 
Não temos que acreditar nele, ainda que tenhamos que acreditar que ele crê na verdade do que diz. E tanto quanto ou mais ainda do que de todos os provérbios, devemos desconfiar quando escutamos um “sinceramente lhe digo” precedendo qualquer afirmação. 

O pretendido reforço que traz uma referência à sinceridade do falante mostra a fenda da proposição que vem a seguir.Muitas vezes ela, funciona como "jogada" da crueldade. Quem não conhece aqueles que, sob o pretexto da sinceridade, se permitem humilhar o próximo, se vangloriam de sua incontinência no dizer e "espetam e escarram" as maiores inconveniências sem calcular os resultados, e com bela indiferença se fazem desentendidos dos mesmos? Dado o universal reconhecimento da sinceridade como virtude, quem usa de sua franqueza como arma se sente justificado e faz passar o repúdio e as funestas consequências de seu dizer à conta do outro, daquele de quem não pode tolerar a produção e o proferir da verdade que ele representa: “bem, disse o que pensava... se não
agrada aos demais, isso é problema deles.”
Partamos do exemplo mais banal: “que gorda você está!” Rapidamente distinguimos
várias verdades em jogo. Poderíamos falar de uma verdade “referencial”, objetiva. A amiga, esta que escuta, ganhou quilos, e sua sincera camarada a faz notar. A balança poderia confirmar seu dizer. Basta esta consideração objetiva para entender a frase? 

Ninguém poderia ser tão ingênuo, e muito menos quem escuta. 
Há outra verdade que podemos considerar como subjetiva e que se  refere à consciência da locutora. A metacomunicação é dupla: “Observo que você aumentou de peso"
Digo isso para que veja que isso e nota que talvez deva que se cuidar, pois sua imagem
me interessa. E, além disso, não sou aduladora. Digo-lhe a verdade ainda que seja desagradável.
Minha opinião é sincera e  isso me põe acima daqueles que lhe ocultam o que eu

 me animo a dizer-lhe”. 
Pode-se dizer que esta verdade é “conferencial”: a opinião é dada como uma proposição
que pode ser aceita ou recusada; confere-se àquela que escuta a possibilidade de
julgar sobre a suposta obesidade. E existe outra verdade, uma terceira inadvertida ou racionalizada pela locutora: a da agressividade, a da intenção, muito mais grave, por não ser premeditada em seu desejo de aborrecer. Esta violência não deixa de ser percebida por quem escuta e que recusará a desqualificação de sua própria imagem, possivelmente em relação direta
com a importância dada à pretensa gordura.
 
No México, por exemplo se usa aexpressão coloquial “me cais gorda/gordo” para referir-se à impressão desagradável que alguém nos causa. A insinuação repúdio, que cai sobre quem a profere.
Em análise, se comprova que o dito "Sincero" esta busca inconsciente da antipatia é fonte de um gozo particular, intimamente vinculado com o masoquismo moral. 
Esta é a verdade não referencial, nem conferencial, mas sim “transferencial” da afirmação desagradável, e todo psicanalista está familiarizado com este fenômeno no âmbito da sessão, realçado porque, com a insinuação o sujeito supõe estar cumprindo ao pé da letra um rito.
Como a “sinceridade” é um ornamento que qualquer um pode reivindicar para si como adjetivo, a recompensa de prazer narcisista que se espera pela via paradoxal de alcançar não a simpatia, mas a hostilidade do outro compreender a economia de semelhante intercâmbio, pois pensemos que os ditos sinceros acabam atraindo mais desprazeres do que prazer e se qualidade fosse esta premissa seria ao contrario. 
É assim, por meio do mais trivial dos exemplos, que podemos seguir o processo pelo qual
alguém chega a ser “vítima de sua própria sinceridade”, desconhecendo o cheiro de prazer que exala do dizer.  Em sua forma ingênua, aparece como uma queixa a respeito da incapacidade do outro para tolerar a verdade. 

O sofrimento por ser vítima da sinceridade vale como um sacrifício no altar da Verdade.
Abundam os que se oferecem para recompensar a si mesmo com as palmas do martírio. A
incompreensão da qual acusam o outro lhes serve de passaporte. 
Temos que reconhecer que a sinceridade é uma virtude suspeita, que, às vezes, muito simplesmente, é nefasta. 

A sinceridade como intenção e como pretensão de dizer a verdade deve estar advertida de
seus perigos. A mulher e o homem, sendo prudentes, subordinam os princípios abstratos à
situação concreta do encontro com o outro. A verdade não está no que alguém pensa, mas na correta avaliação do que o outro pode tolerar daquilo que esse alguém crê saber. 

 O analista sabe que não pode dizer o que pensa sem exercer uma resistência ao dizer de seu analisante, sem cair no registro da crueldade, sem fazer-se por sua vez vítima de sua sinceridade, ou seja, tudo aquilo que contradiz como dizia Freud a Firenczi, a finalidade do amor. E o analista está advertido: o que ele pode pensar não é a verdade do outro, pois a verdade, ele o sabe, é algo que não se pode dizer nem de si mesmo.
Além disso, as palavras sempre traem aqueles que pretendem enunciá-las.
A exigência de sinceridade se dissolve quando se reconhece o inconsciente e sua
dependência do Outro. 
A veracidade não reside em quem fala, mas na relação dialética que o une com quem escuta. A verdade se expressa sempre, mesmo quando o verdadeiro for a necessidade de mentir. 
Pensemos na analogia de que: "Um falsificador, um verdadeiro falsificador, entrega moeda falsa. Se entregasse moeda verdadeira seria um falso falsificador". A verdade é a de fazer passar o falso como se não o fosse.

" A verdade nada mais faz que aprisionar a mentira no erro”. Lacan

A mentira não é econômica. Uma vez que a dizemos, mudamos o estatuto psicológico e jurídico do mentiroso e do enganado. O primeiro deve sustentar sua falsidade e deve evitar ser descoberto. Segundo todos sabem, é necessário que o mentiroso tenha boa memória. Faz-se prisioneiro de sua mentira e deve exacerbar as precauções para não trair-se. Uma mentira exige outras ao redor. O homem que diz uma mentira raramente percebe a pesada carga que pesa sobre si, pois deve inventar vinte mais para que a primeira se sustente. O jogo é perigoso, e, por isso mesmo, pode resultar como sempre que se trata de correr risco, extremamente atrativo. A psicologia daquele que mente para obter lucros nos mostra assim como a do jogador e de um modo que vale a pena comparar a dimensão dogozo. É preciso levar em conta que o mentir é um ato de linguagem e que é um performativo
muito particular impregnado efeitos perlocutórios: uma vez dita a mentira, os dois participantes no contrato se veem obrigados a jogar seus papéis, são os efeitos da palavra. Este performativo da mentira passa comumente em silêncio, em uma parte da frase que não se diz: “Peço-lhe que acredite que...”, e logo o enunciado “o motor do automóvel que estou lhe vendendo funciona maravilhosamente”. O enunciado é uma constatação, uma afirmação sobre um objeto da realidade que poderia revelar-se verdadeira ou falsa. Porém, como o vendedor sabe que sua frase
é enganosa, precisa fazer todo o necessário para que sua mentira se sustente e não seja descoberto como tal pelo comprador que, por sua vez, se mostra mais ou menos crédulo. Este novo exemplo demonstra que a palavra é sempre suspeita, acomodável, adaptável ao comércio dos desejos de um e de Outro. Quem mente pretende aprisionar sua vítima (que muito frequentemente é sua cúmplice) no círculo da intriga. Sua relação com o enganado é de desdém. Goza de saber o que o outro ignora.
Talvez tenhamos um exemplo muito claro deste gozo em Jocasta. Ela não tinha como NÃO saber, devido a todos os antecedentes, qual era a verdadeira identidade de seu filho/esposo, porém ela gozava da ignorância de Édipo e realizava assim, duplamente, seu desejo criminoso. Gozava e temia triplamente;   

 O autoengano é necessário para que o sujeito se acredite e se faça acreditar. Precisamente, é a dúvida que alimenta a necessidade de dirigir-se ao outro para a confirmação da precariedade da própria existência.  Muitas vezes se cola esta demanda no enunciado: Sim? Não? Verdade? Viu? Compreende? “You know”, além dos gestos e dos olhares de consentimento e de confirmação.

A sinceridade é a crença no próprio dizer: ela tem pouco a ver com a verdade.

E você, será que não é vítima de sua própria sinceridade?
Pense nisso....

REFERÊNCIA

DESCARTES, R. Meditaciones Metafísicas. Cuarta meditación. Serie: Clásicos No. 3. Madrid:
Edit. Gredos, 1987.
FREUD, S. E FERENCZI, S. Correspondance,tomo1. Paris: Calmann-Lévy. 1992.
JANKÉLÉVITCH, V. Les Vertus et l´Amour, 2 vol. Paris: Flammarion, 1986.
NIETZSCHE, F. The will to power. New York: Vintage, 1967.
 Human, all too human. : University of Nebraska Press, 1996.