Descontruindo

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Depois de um tempo clínico começamos a perceber certas coisas importantes nos ensinamentos teóricos mais confortáveis a nossa maneira de contrução psíquica. É natural certas reações e comparações sobre o ortodoxo e o contemporâneo, mas é notável as diferenças e sentidas as percepções.
De início, havia a preocupação de entender, de encaixar uma coisa na outra, de “dar um sentido” ao emaranhado de sem sentidos que parece ser a teoria psicanalítica. Mas depois de caminhar, depois de vislumbrar as paisagens que se esboçavam as fronteiras da  Psicologia, compreendo as cruciais diferenças entre as áreas co-irmãs. Sendo nós profissionais teorizadores ou teorizantes, em um dia qualquer destes, nos pegaremos perambulando cobertos de ouro e prata, no meio do deserto do Sinai, embora enriquecidos, não nos salvará a vida profissional tais riquezas. 
Meu encontro com a Psicanálise Contemporânea não representa necessariamente algo sugestivo para ninguém, embora tenha sido significante para mim, para você, pode não ser nada questionador.
Para ser sincero, li e reli alguns discursos contemporãneos e, não entendi absolutamente nada. Era como se uma barreira se interpusesse entre mim e eles. Algo me impedia de penetrar a experiência que se tentava transmitir naquele texto. Nada se fixou em minha memória. Sabia apenas que se aludia a algo parecido com a experiência do artista, interrogando os ouvintes sobre qual era  sua própria construção artística.
 Passado algum tempo, me percebi nesta frases “Nenhuma narrativa com pretensões de ser uma exposição de fatos (...) merece, realmente, enquadrar-se na categoria de ‘descrição factual’ do ocorrido”.
“Não se atribue à memória a importância que comumente lhe é conferida”.  O motivo é simples: as distorções involuntárias, que a própria Psicanálise aponta como inevitáveis, tornam improvável qualquer relato factual. A memória seria, portanto, “tão somente é uma comunicação pictórica, de uma experiência emocional” uma formulação verbal de imagens sensoriais. 
Talvez, para alguns, esta possa parecer uma constatação inocente e óbvia, mas, a meu ver, ela desestabiliza todo o saber, pois insere à base de qualquer formulação verbal a desconfiança de que aquilo seja apenas uma representação interna e, em última análise, um expediente para fugir da angústia do vazio que rodeia nossa ignorância. 
A ilusão de ter captado o real, o factual seria neste caso apenas uma tentativa psicótica de fugir do desafio que o factual nos impõe. Pois, na realidade, o que se quer evitar é de entrar em contato com a turbulência emocional que se situa à base da ignorância acerca do fato.
A turbulência emocional à qual me refiro, constata que o ser humano abomina o vazio. Por esta razão, “ele vai tentar preenchê-lo encontrando alguma coisa que entre naquele espaço que foi revelado pela sua ignorância”
O problema, de fato, é saber tolerar a frustração, o senso de vazio e a angústia que a ignorância nos impõe. Neste sentido, se a frustração não for suportada, todo saber “teórico-científico” pode se tornar um simples tapa-buraco. Isto me levou a perceber, desde o primeiro dia em que me deparei com a complexa trama do pensamento psicanalitico contemporâneo, que, por trás, havia não apenas uma simples teoria, mas uma postura existencial desafiadora.
 Compreender tornou-se, portanto, um desafio a não querer “possuir” o meu pensamento, aceitar a minha ignorância, o meu não saber psicanalítico. 
É dificil por muitas vezes aceitar, mas é correto afimar que um bom analista deve saber ser tolerante à frustração, sabendo “suspender” sua memória e seu desejo. 
“Não há lugar para o desejo na análise; não há lugar para a memória (...). O desejo de ser um bom analista é um obstáculo para que se seja um analista”.
Embora bastante conhecida e citada, esta frase, não deixa de ser paradoxal e desafiadora. Isto significa, por exemplo, que o analista deve prescindir na análise do desejo de “cura”, mesmo porque o conceito de cura implica no conceito de sanidade e na tentativa de encaixar o paciente num esquema teórico de sanidade. 
A presença do desejo também cria uma ranhura, excluindo tudo o que não se encaixa no desejo do analista, e reduzindo assim o campo da escuta. 
Existe depois a tentação de encaixar o que o paciente está dizendo nas teorias aprendidas, disparando, a seguir, em cima dele, uma “interpretação” cientificamente correta, baseada em alguma memória.
 Perceba nesta frase “à idéia de que a Psicanálise é uma tentativa de fazer uma abordagem científica da personalidade humana”. Mas, será que o analista lembra que está lidando com gente de carne e osso (real people). 
Nada pode ser descartado, tudo precisa ser observado e examinado com muito cuidado, caso contrário o analista poderá “jogar fora a necessária centelha vital”, que se encontra escondida no meio dos escombros. Será esta fagulha, a capacidade de reverie (reverter) do analista, que pode fazer com que as cinzas de uma relação analítica se tornem uma fogueira, favorecendo a transformação dos elementos Beta em elementos Alfa, em algo que pode ser pensado pelo paciente. 
 Esta capacidade de escuta do analista, não apenas limitada ao contexto verbal, onde muitas vezes a presença dos objetos rompidos, se capt apela simples presença de uma mudança física no paciente, uma mudança sutil, às vezes na respiração, no tom muscular, no olhar, na maneira de sentar-se.
Isto é muito importante, pois há no paciente psicótico uma grande dificuldade em relação à linguagem verbal, por exemplo.
Para concluir é importante fazer a diferenciação entre o que é right (certo) e o que é true (verdadeiro). 
De acordo com a conteporâneidade Psicanalítica, o que caracteriza o pensamento psicótico é a onisciência, que substitui a discriminação entre  verdadeiro e o falso “por uma afirmação ditatorial de que uma coisa é moralmente certa e outra errada”.
Haveria portanto “um conflito em potencial entre afirmar-se que algo é verdadeiro e afirmar-se que algo é moralmente superior”, isto porque “a pretensão de uma onisciência que negue a realidade, seguramente faz com que a moralidade, que nessas condições se forma, seja uma função da psicose”
Diante disso é interessante aqui frisar a impossibilidade ou, pelo menos, a dificuldade para o  ser humano de ter acesso ao Ser. Resta de fato a grande questão de saber se o que é real para mim é também real para o outro, ou, dito de outra forma, se o que eu considero real não é apenas uma alucinação do real. 
Isto nos joga  na necessidade de estar constantemente aberto para discernir o que é verdadeiro daquilo que é falso, sabendo porém que nunca poderá afirmar com certeza que aquilo que é verdadeiro,  para ele é também o certo.