A imagem da sede.

Ainda dia destes li uma matéria a respeito da exclusão do Narcismo do CID 10 (Codigo Internacional de Doenças). Diante da eminência desta exclusão, é importante relembrar este pequeno artigo. 
O narcisismo, conceito psicanalítico cujo nome Freud tomou de empréstimo ao mito grego de Narciso, o jovem que apaixonou-se por sua própria imagem espelhada na superfície de um lago, ficou associado, em nossa cultura, à idéia de vaidade que, segundo o dicionário católico é, dentre os sete pecados capitais, o mais grave, pois  todos os outros derivariam deste.
Conforme o mito explicita, a idéia de narcisismo está vinculada à questão da imagem e esta, por sua vez, à noção de identidade. A imagem corporal é o primeiro esboço sobre o qual irão se desenhar, posteriormente, as identificações constitutivas da personalidade. 
Assim sendo, não podemos deixar de fazer uma reflexão acerca da função primordial da imagem no mundo contemporâneo, motivo pelo qual alguns teóricos enfatizam que vivemos no interior de uma cultura do narcisismo, entendendo-se por isto, uma cultura voltada para a imagem e para o individualismo.
Lembramos o comercial que dizia: imagem é nada, sede é tudo. Obedeça sua sede, beba o refrigerante que você deseja.” O que se pode depreender desta palavra de ordem? Obedeça a sua sede, sua pulsão (tendencia), seu desejo e não àquilo que um outro refrigerante  promete fazer por sua imagem. É tão grande o poder da imagem em nossa cultura, que o sucesso do referido comercial decorre da estratégia de utilizar a antítese, imagem é nada, para antagonizar seus concorrentes que afirmam: imagem é tudo.
Se a ênfase na imagem é tudo, alimentando o que poderíamos chamar de uma vertente patológica do narcisismo, cresce no Brasil uma cultura de idolatria ao corpo perfeito, alavancando uma economia da medicina cosmética que movimenta elevadas quantias em dinheiro, promovendo um efeito avalanche que colocou nosso país como campeão no ranking das cirurgias plásticas de caráter exclusivamente estético realizadas no mundo, ultrapassando os Estados Unidos que, até então, detinha este título. 

 
Quanto ao aspecto do individualismo observamos que se encontra associado à idéia de egoísmo que, por vezes, é utilizado como sinônimo para o pecado da vaidade.
Ego-ismo, amor exclusivo a si mesmo opõe-se a altru-ismo, amor ao outro. É esta exclusividade do amor a si mesmo com exclusão do outro, que vai tornar impróprio este amor.
Que dizer então do amor próprio? Quando se diz de alguém que ele não tem amor próprio, que não se orgulha de si mesmo, queremos dizer que esta pessoa tem uma baixa auto estima, ou, em linguagem psicanalítica, uma falha narcísica
A falta do amor próprio, do amor bem medido por si mesmo, conduz ao aprisionamento do indivíduo no desejo do outro, alienando-se nele, dessubjetivando-se e passando, irremediavelmente, à condição de objeto. É neste sentido que é preciso afirmar que o narcisismo pode alimentar a vida ou a morte.
Os  conceitos de narcisismo, ego e identidade encontram-se estreitamente ligados. É pelo olhar do outro, especialmente este outro materno que encarna todas as nossas possibilidades de satisfação, prazer e segurança, que aprendemos a saber quem somos. Se o olhar deste Outro brilha por nós e se em algum momento pudermos nos sentir capazes de preencher  este Outro de alegria, estaremos constituindo nosso amor próprio, aprendendo a ler no espelho do olhar do Outro, que nossa existência vale a pena e tem um sentido, nem que este sentido seja, num primeiro momento, preencher os anseios deste outro que significa tudo para nós, condição mesma de nossa existência.
 É fundamental que em algum momento a criança possa sentir-se majestosa, como também  é primordial, para que este amor não se torne impróprio, mortífero e excludente, que um terceiro termo, aquele que virá exercer a Função Paterna, interdite esta vivência de satisfação absoluta, procedendo cirurgicamente a uma ferida narcísica.
O narcisismo mortífero se alastra do nível individual para os processos grupais, atingindo fenômenos sociais de grande alcance e da maior gravidade para o destino da humanidade. Absolutismo, totalitarismo, intransigência, intolerância, encontram suas raízes em caminhos complexos. 
Diante disso o desafio é poder transformar o sofrimento deste amor ferido em compaixão, em arte compartilhada de conviver com as cicatrizes, vivenciando-as como fruto deste combate entre vida e morte e transformá-las em resto, à partir do qual, toda criação humana possa se abrir em favor da vida.
Uma das principais funções de nosso ego narcísico é nos fornecer uma ilusão de permanência e continuidade, que nos permita tocar a vida no dia a dia do tempo medido por nossos relógios. Assim, quanto mais se aguça os acontecimentos de um mundo onde tudo é consumido e se torna superfluo em tempo recorde, maior a tendência de um endurecimento deste ego narcísico, que tentará sempre mediar os conflitos entre nossos impulsos mais intensos e as exigências da realidade.
Pensando assim, torna-se fundamental pensar que este ego narcísico, torna-se uma importante fonte de resistência às mudanças na esfera individual, quanto no âmbito do pensamento científico e moral.
           Dentro desta perspectiva, vemos como função ética da psicanálise enquanto prática intensiva em consultório, contribuir para que seja viável suportar a angústia produzida pela incerteza e pelo não saber, mantendo no espírito humano, uma abertura possível deste conhecimento e por consequencia o fortalecimento e evolução.